Segurança pública nunca foi tema tão debatido pela sociedade brasileira. A crise não é de agora, mas a opinião pública, diante do cenário assustador de avanço da criminalidade e dos índices de violência, começa a concentrar sua atenção em busca de mudar essa realidade. A sociedade não aguenta mais pagar por uma segurança que não tem.
O caos enseja o novo. Não há mais espaço para demagogias ou então, mais do mesmo. O velho discurso de falta de verbas para contratação de gente e compra de equipamentos já não satisfaz as mentes mais atentas, pois, felizmente, aumentou a massa crítica.
A sociedade percebeu que não adianta gastar dinheiro bom em coisa ruim. Dinheiro nenhum fará o atual sistema “falido” funcionar.
Sem a pretenção de esgotar tema tão complexo, a proposta é salientar uma das causas, dentre as principais, que explica a realidade que estamos vivendo, sendo esta introdução importante para dar ao texto, contexto.
Para entrar definitivamente no assunto principal, é importante antes chamar a atenção do leitor para o fato de que a impunidade é protagonista nessa história.
Perguntem a si mesmos: por que o crime compensa no Brasil?
No decorrer do texto se evidenciará que a impunidade, infelizmente, é regra.
O primeiro gargalo da investigação (policial) é a divisão do ciclo policial, característica do modelo de polícia brasileiro.
Levando em consideração o modelo estadual, que desempenha, digamos, o grosso da atividade policial, temos duas polícias: a Civil e a Militar.
Podemos chamá-las, não com a intenção de desmerecê-las, de meias polícias. Cada uma só age em parte do fenômeno criminal. Enquanto uma atua na prevenção, policiamento ostensivo e preventivo (Polícia Militar ou PM), a outra atua na investigação e também exerce as funções de polícia judiciária (Polícia Civil). A primeira, antes do crime ocorrer, e a segunda, após a ocorrência do crime.
É possível já antever o prejuízo disso para resultados positivos no combate ao crime e à impunidade?
Duas meias polícias, com estruturas bem diferentes, regimes jurídicos diversos, que não se comunicam e, pior, que agem como competidoras para chamar a atenção do “patrão” (Governo).
Com essa divisão, perde-se muito em matéria de conhecimento e inteligência criminal. Por exemplo, a PM faz todo um trabalho para realizar uma prisão em flagrante importante, mas seu serviço acaba aí. Entrega tudo à Polícia Civil, que fará o trabalho de investigação de algo que já ocorreu, tentando descobrir desdobramentos daquela ação. A PM volta a fazer seu serviço de policiamento ostensivo e preventivo sem auxiliar nas investigações.
Outro ponto a se destacar é que as polícias civis (PCs) têm um contingente muito menor do que as PMs. Assim, as PCs recebem ocorrências da PM, de outros órgãos de segurança (GM, PF, PRF) e também de várias outros órgãos e instituições, como o Ministério Público, o Judiciário, secretarias, órgãos de fiscalização e controle, fazendários, ambientais, etc.
Isso forma o primeiro gargalo (institucional). A exclusividade do trabalho de investigação nas mãos de uma única instituição, com efetivo bem menor já em relação à sua parceira (PM) estadual, sem necessidade de entrar no mérito de outras carências.
Para ilustrar, podemos pensar na seguinte analogia: um cano de grande diâmetro despejando líquido em um cano estreito. O que acontece?
Para piorar, e muito, a situação, não bastasse essa exclusividade institucional, temos, dentro da própria estrutura das PCs, um outro gargalo (segundo), que é o fato de um cargo apenas da estrutura (com número bem reduzido em relação aos demais) deter várias prerrogativas exclusivas, o que centraliza as investigações no seu entorno. Nada se faz em matéria de investigação oficial sem a participação desse cargo, que é o Delegado de Polícia (gargalo funcional).
Os outros policiais civis não possuem autonomia investigativa. Se agem com alguma autonomia, esta é restrita ou mitigada. Ou essa investigação será realizada a título preliminar, sendo posteriormente direcionada ao centralizador (Delegado) para analisar seu futuro (instauração de procedimento oficial de investigação ou arquivamento), ou então ocorrerá no curso da investigação oficial, sempre sob a coordenação do centralizador. Só isso já é suficiente para gerar um acúmulo invencível de trabalho nas mãos dos delegados, pois são poucos se comparados ao restante da carreira policial da própria instituição que pertencem.
Em outros países, a investigação é realizada de forma descentralizada e com autonomia plena por parte dos policiais investigadores, que têm uma atuação técnica, com base em ciência policial. Assim, alcançam altos índices de eficiência.
O público em geral, quando imagina um modelo de investigação (pela influência do cinema), pensa logo na dupla de investigadores trabalhando nas investigações do início ao fim, alcançando resultados satisfatórios, como no modelo norte americano, por exemplo. Nada mais longe da realidade brasileira.
No país, adotamos um modelo burocrático, com excesso de formalismos, que usa como parâmetro o processo judicial, presidido por um bacharel em Direito (Delegado) que, em muito, se assemelha mais com um cargo de natureza jurídica do que policial, formando o terceiro gargalo da investigação (instrumental).
Essa natureza do inquérito policial, em ser um procedimento análogo ao processo judicial, deu à investigação policial (fase pré-processual) características descabidas. O que deveria ser técnico, descomplicado, flexível, ágil e eficiente, se mostrou burocrático, engessado, lento e ineficiente. Os inquéritos lotam cartórios de delegacias sem resolução, numa verdadeira fábrica da impunidade.
Exemplos para ilustrar não faltam: o local de crime raramente é visitado pelo delegado; existe um lapso descabido entre a ocorrência do crime e o início das investigações; suspeitos e testemunhas não são ouvidas no local onde são encontradas, mas intimadas a comparecerem nas delegacias, o que gera desperdício de tempo e recursos humanos e materiais; o procedimento é demasiadamente formal, sendo os documentos produzidos autuados como se fosse em um processo judicial, com capa, etiquetas, termos, carimbos, etc., fazendo com que um grande contingente gire ao redor da formalização, deixando a produção de conhecimento desfalcada.
Algumas investigações são exitosas? Existem operações importantes e de sucesso? Sim. É preciso aplaudir todos os envolvidos pelos bons trabalhos, mas isso não apaga o fato de que o modelo não funciona na sua quase integralidade de situações. Levantamentos realizados por fontes oficiais e não oficiais, dentre elas o Ministério da Justiça, e isso é muito fácil de pesquisar, dispensando citação, apontam que menos de dois dígitos percentuais dos inquéritos instaurados levam a algum tipo de responsabilização criminal.
Isso quer dizer que em cada 100 crimes cometidos, mais de 90 ficam impunes.
Já foi a uma delegacia de polícia noticiar um crime digamos, sem grande repercussão? Qual foi o resultado? Algum conhecido já comentou algo parecido?
Outro aspecto negativo do modelo “judicialiforme” (análogo ao judicial) de investigação, baseada no inquérito policial, foi a idealização e formatação da estrutura organizacional e funcional das PCs com base no Poder Judiciário. Enquanto este é composto, nuclearmente, em autoridade judicial e servidores auxiliares, aquelas são formadas pela autoridade policial e seus agentes (com funções análogas às de escrivão e de oficial de justiça). Tal paralelo criou carreiras policiais divididas em castas: a dos delegados e a dos demais policiais, com grandes diferenças de valorização profissional, especialmente, salarial.
O policial entra por concurso público, mas nunca chega às funções de coordenação das investigações ou a postos de comando e gestão do órgão. Para isso, terá que sair da polícia para, por novo concurso, entrar novamente. Competirá com um enorme contingente de candidatos, às vezes, dedicados exclusivamente aos estudos, que não precisam dividir seu tempo com a atividade profissional, ainda mais uma que conta com a chamada dedicação exclusiva.
Se privilegia a experiência policial? Será que o policial trabalhará motivado? Será que dará o seu máximo, todo o tempo, para fazer o melhor e ser reconhecido e promovido? A resposta é negativa. Não existe promoção. Não existe carreira.
Eis uma fotografia do nosso modelo de investigação, uma das grandes causas da impunidade e violência que vemos todos os dias no cotidiano do país.
Corporativismos tentam esconder isso da sociedade. A mídia é conduzida a fazer sensacionalismo “policialesco”, ao invés de ir atrás das verdadeiras causas da crise na segurança pública.
O modelo estadual é também utilizado, com grande similaridade, no nível federal (Polícia Federal adota a mesma estrutura e modelo de investigação, assim como detém a exclusividade institucional) e seus números não são muito diferentes.
Para não apontar apenas os problemas, mas propor soluções, a resposta passa por acabar com os gargalos.
Primeiro, acabar com a exclusividade institucional, implantando o ciclo completo em todas as polícias, ou seja, todas atuando tanto na prevenção, como na investigação, fazendo com que cada uma tenha uma estrutura de investigação apropriada e do tamanho necessário para dar conta da demanda que ela mesma é capaz de produzir.
Em segundo lugar, acabar com a exclusividade funcional, ou seja, descentralizar as investigações, colocando fim às prerrogativas exclusivas de um único cargo, fazendo com que um número muito maior de investigadores, com formação multidisciplinar, possam atuar com autonomia para vencer a grande demanda.
Por fim, acabar com o formalismo exagerado e burocrático do inquérito policial, permitindo uma atuação técnica, descomplicada e célere, para se alcançar índices de eficiência compatíveis com exemplos internacionais, diminuindo a impunidade e seus desdobramentos nefastos, como o descontrole da criminalidade e da violência.
Essas alterações permitiriam também uma modernização da estrutura organizacional das polícias, prevendo carreiras meritocráticas, onde o policial que entre pela base, vá ascendendo na carreira por experiência, formação especializada e mérito, chegando aos postos de coordenação e gestão.
Que este texto possa movimentar as “águas paradas” da segurança pública e colocar o assunto na pauta de discussões dos nossos representantes políticos, atuais e futuros.
Mauricio Garcia
Bel. em Direito
Especialista em Investigação Policial
Escrivão de Polícia Federal
Conselheiro da ANEPF
ANEPF
Fonte: Agência Fenapef