A europeia Pilar* desembarcou no país no ano passado, disposta a explorar as belezas naturais do Nordeste brasileiro e, logo depois, voltar à sua terra natal. Mas a estudante universitária se encantou com o que viu e decidiu ficar. Não tinha emprego, familiares ou amigos. A vontade de morar no Brasil levou Pilar a buscar uma saída para o impasse com as autoridades migratórias. No Nordeste, onde se fixou, ela conheceu um brasileiro decidido a se mudar para a Europa. Diante da convergência de interesses, a dupla logo encontrou a solução: o casamento. Com o matrimônio, a estudante teria liberdade para procurar empregos no Brasil e seu falso marido ficaria livre para circular pela Europa.
A negociação não envolveu pagamento, já que a união beneficiaria os dois. "Depois de uma temporada no Nordeste, resolvi morar no Brasil. Mas diante da burocracia para regularizar minha situação aqui, surgiu a possibilidade de me casar com um brasileiro para acelerar a solução. Essa foi a saída mais rápida para que eu pudesse ficar", justifica Pilar. Durante seu périplo pela Polícia Federal para obter o visto de permanência, ela percebeu que não era a única a recorrer a esse expediente. "Tem muita gente que se casa no papel para conseguir a documentação e algumas pessoas até pagam por isso. No meu caso, não foi preciso", afirma. Ela e seu falso marido brasileiro dividiram os custos da união de fachada. Agora, com autorização para ficar no país, Pilar pretende trabalhar na área de turismo.
O presidente da Associação de Estrangeiros no Brasil, Grover Calderón, reconhece que a burocracia dificulta a regularização de imigrantes. Mas ele desaconselha o casamento de fachada, especialmente quando envolve pagamento. "Já alertamos os estrangeiros sobre o risco. Isso representa fraude, o que implica em abertura de processo penal por crime de falsidade ideológica ou uso de documentos falsos", orienta o presidente da entidade, mestre em direito pela Universidade de São Paulo.
Grover é peruano e mora no Brasil há 15 anos. Agora, ele atua pela melhoria das condições de vida dos estrangeiros que querem ficar no país. O presidente da associação conta que o rigor da Polícia Federal é grande para fiscalizar os casamentos entre brasileiros e estrangeiros e, por isso, muitos matrimônios forjados acabam desvendados. "O controle da PF se assemelha à atuação da polícia americana que a gente vê nos filmes. Além de apresentar uma quantidade enorme de documentos, o casal recebe a visita de agentes, que entrevistam vizinhos, o zelador e até o síndico para saber se existe de fato uma união matrimonial", diz.
Um empresário que atua oferecendo apoio a estrangeiros ilegais no Brasil relata um caso em que a Polícia Federal descobriu um casamento falso entre um brasileiro e uma imigrante. O agente chegou ao endereço informado à PF como sendo a residência do casal e, ao entrar no apartamento, um fato chamou a atenção: havia somente três pares de sapatos femininos no local. "Como nenhuma mulher em nenhum lugar do mundo tem uma quantidade tão pequena de sapatos, o agente logo percebeu que era uma fraude", relembra.
Quando um casamento vira negócio, e a situação é identificada pela Polícia Federal, tanto o brasileiro quanto o estrangeiro respondem a processo criminal. Os participantes podem ser enquadrados em dois crimes: estelionato, que prevê pena de um a cinco anos de cadeia; e infração ao Estatuto do Estrangeiro. Essa legislação, de 1980, determina que é crime fazer declaração falsa em processo de concessão de visto, de registro, naturalização, ou para a obtenção de passaporte. "Além disso, se confirmado o processo penal, o estrangeiro acaba expulso do país", destaca o presidente da Associação de Estrangeiros no Brasil, Grover Calderón.
Procedimentos
O superintendente da Polícia Federal em Goiás, Joaquim Mesquita, explica que sempre é realizado um processo administrativo de checagem de informações para liberar a permanência de estrangeiros por causa de matrimônio. "É feita uma investigação para apurar os vínculos, que inclui conversas com vizinhos, parentes, empregadores, além do casal", conta. "A maioria dos casos é formada por casamentos legítimos, mas é preciso verificar se não se trata de uma fraude", acrescenta.
Além da burocracia e da falta de pessoal nas superintendências da Polícia Federal em quase todos os estados, outro fator emperra os processos de concessão de vistos e de permanência a estrangeiros: a legislação é considerada ultrapassada por especialistas. O professor de direito internacional da Universidade de Brasília George Galindo explica que o Estatuto do Estrangeiro é uma lei criada durante a ditadura militar. "O casamento facilita bastante a permanência do estrangeiro, mas o matrimônio não garante automaticamente a cidadania", conta o especialista. "O Estatuto do Estrangeiro é muito duro quanto à aquisição da nacionalidade brasileira. A lei foi criada na ditadura e teve uma elaboração baseada nas noções de segurança nacional. Naquela época, o estrangeiro era visto como um inimigo." Por causa da demora na liberação da documentação de imigrantes, a Associação de Estrangeiros mandou uma carta ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, pedindo melhorias na oferta de serviços. "Muitos funcionários da Polícia Federal são terceirizados e não têm conhecimentos mínimos da legislação migratória brasileira. Com isso, a tramitação demora", comenta Grover Calderón. "O pedido de permanência por casamento ou por filho brasileiro, por exemplo, demora até um ano e meio. Esse processo administrativo, em tese, deveria demorar apenas 60 dias", acrescenta. O casamento de fachada não é a única estratégia adotada por brasileiros. Como o Correio mostrou em uma série de reportagens publicada desde a última segunda-feira, cidadãos do país têm recorrido a uma fraude judicial para conseguir cidadania europeia. Adultos brasileiros pagam a estrangeiros para serem adotados e, com a nova Certidão de Nascimento em mãos, podem conseguir um passaporte europeu. O Conselho Nacional de Justiça investiga a participação de servidores de comarcas do interior de Goiás no esquema. Depois das denúncias, pelo menos 74 decisões foram canceladas.
* Nome fictício
O que diz a lei
A Lei Federal n° 6.815, de 1980, mais conhecida como Estatuto do Estrangeiro, estabelece quais benefícios o casamento com brasileiros pode trazer. O artigo 134 da legislação diz que o estrangeiro pode regularizar provisoriamente sua situação no Brasil apresentando uma certidão de matrimônio às autoridades. Essa mesma lei estabelece que os cartórios devem remeter mensalmente cópia dos registros de casamento envolvendo estrangeiros. O artigo 45 diz que o Estado brasileiro não pode expulsar do território estrangeiros que tenham cônjuge brasileiro, desde que o casamento tenha sido celebrado há mais de cinco anos, ou que tenha filho nascido no Brasil que, comprovadamente, esteja sob sua guarda e dele dependa economicamente. O Estatuto do Estrangeiro também prevê as sanções contra os casamentos de fachada. O artigo 125 do texto determina pena de um a cinco anos de reclusão para quem fizer declaração falsa em processo de transformação de visto, de registro, de naturalização, ou para a obtenção de passaporte para estrangeiro.
Fonte: Correio Braziliense